O Arcanjo Sentado - Relato de um VBAC pélvico


O parto de Miguel foi um processo que exigiu uma dedicação intensa de todo meu ser. E o vislumbre dessa experiência que viveria se anunciou ainda em 2007 na gravidez de minha primeira filha, Luna, e se fortaleceu na segunda gravidez daquela que seria chamada Maria. Vivia eu no mundo sonolento das cesáreas agendadas, e apesar de ter uma mãe que pariu nove, estava imersa no modelo obstétrico vigente e jamais tinha me questionado como seria o nascimento de um filho, até começar a vivenciar a transformação fisiológica e emocional de gerar um ser. E tudo ia acontecendo, as informações sendo buscadas, o véu de Maya aos poucos deixando ver o que o desejo pedia... Parir. A descoberta de que podia parir, prazerosa e naturalmente era encantadora, fui seguindo essa aventura, construindo um plano ceifado abruptamente às 35 semanas de gravidez, com o rompimento prematuro da bolsa amniótica. E para aquela mulher o sonho acabou ali, no líquido que jorrava e em um bebê sentado em seu ventre. Veio o corte na carne e na alma e a frustração do não parir. O curso do tempo seguiu, e com ele a boa nova de mais uma gravidez anunciou-se. Alegria, alegria! A vida em formação, outra filha, amor que se expande, esperanças renovadas, expectativa de agora sim, junto com esse nenenzinho terei outra chance. Eu já não era mais a mesma, tinha informações, a minha história anterior, e o desejo agora acrescido de uma paixão ideológica pelo parto ativo e pelo nascer com respeito. Sem perda de tempo, comecei a frequentar as reuniões do Ishtar, a trocar ideias, aprender, ter orientação, me sentir entre iguais, tudo aquilo lá falava de algo que instintivamente sempre esteve em mim, era bom se reconhecer nas outras barrigas e abraçar com cumplicidade aquelas mulheres. A gravidez avançou e com 30 semanas a obstetra estranhou a medição do meu ventre, fato que se repetiu à noite, no encontro do grupo de parteiras que assitiriam meu parto domiciliar. Uma ultrassonografia posterior confirmou a restrição severa de crescimento do bebê por uma insuficiência placentária, também desenvolvi uma pré-eclâmpsia. Um turbilhão me engoliu e ante a orientação de retirar a neném de pronto, optei por seguir amadurecendo-a um pouco mais em mim. Fiquei internada com uma junta médica me acompanhando e apesar de todo aparato, a Vida escolheu outro desfecho, minha pequena se foi. O brilho vazio na tela do exame confirmava apenas o que eu já sabia, talvez sensibilidade emocional, física, espiritual, ou todas juntas, nada posso afirmar, o fato é que senti precisamente quando ela me deixou. Maria, minha luz, estrelinha que pisca no céu! Troquei de hospital, liguei às 3 horas da madrugada para uma médica da junta, que conheci no dia anterior, e ela veio. Também veio a indução, seguida de um improvável trabalho de parto de apenas 4 horas, e muito, muito, muito doído, a dor emocional potencializava a dor física e viceversa. E aconteceu! Na primeira vez houve um nascimento, nessa apenas um parto, o vazio interior, e um par de mamas cheias do precioso líquido que fiz questão de doar, terapeuticamente, vivenciando meu luto. Um acontecimento desse porte não passa displicentemente por nós, é impossível, e o que não está firmado pode vir a ruir com sua força. Passados quase 2 meses, meu companheiro voltou a sua cidade de origem. O que não sabíamos é que além das lágrimas e saudades, deixou uma semente no meu ventre, que germinava silenciosa. Eu tentava retomar minha rotina, mas sentia que algo acontecia em mim, eu me sentia grávida e creditava a sensação ao trauma da perda abrupta, tentava proteger a barriga quando minha filhinha pulava no meu colo e andava nauseada com os cheiros e sabores. Resolvi dar ouvidos ao apelo da intuição, e vi duas listras se formarem no teste que se faz em casa, arregalei os olhos, fiz outro para confirmar, “bobagem é hormônio remanescente”, e mais um para não restar dúvidas... ai, ai, agora um sanguíneo para maior precisão, não é possível esse percentual, ou estou doente, ou supergrávida de quadrigêmeos. A ultrassonografia mostrava um pequeno e agitado feto de 8 semanas, e a dúvida deu lugar a estupefação! Como assim? Mas então foi naquela única vez, vinte e três dias após... Se milagre é um acontecimento que nos deixa com cara de boba, sorriso amarelo e falta de ar, eu estava diante de um. Era meu milagrinho que se apresentava trazendo uma promessa de vida e felicidade. Iniciei o acompanhamento com a mesma médica, que se tornou efetivamente minha obstetra e por conta do histórico recente, optamos por fazer medicação profilática anticoagulante enquanto durasse a gestação e nas semanas seguintes ao parto. Eram injeções abdominais diárias que eu mesma aplicava com disciplina, mesmo sentindo que tudo seguiria bem até o final. As semanas passaram, e o pequeno feto agora tinha sexo e um nome, Miguel, me dizendo quem era em sonho, antes mesmo de me saber grávida. Tudo estava bem e navegávamos em águas mansas, saboreando as delícias do gestar, lendo e relendo livros e sites, frequentando os encontros do grupo e ativamente participando dos debates virtuais. Fazia caminhadas e andava na piscininha do prédio à noite para aliviar as dores e o cansaço. Ah! Como era bom sentir aqueles movimentos fetais. Por volta da 28º semana eu senti meu maior temor se tornar real, o bebê virou e estava pélvico. A ultrassonografia confirmou a posição e revelou um septo no fundo do meu útero, possível causa para essa condição de todos meus bebês ficarem sentados. A minha confiança em um parto natural estremeceu, chorei, me senti injustiçada, revoltada, triste, irada, e oscilei da apatia ao desespero, por uma noite. Na manhã seguinte estava convicta que, estando ele de bunda ou de cabeça, eu iria parir meu filho, e ao trabalho de autodescoberta, superação de medos, resgate de valores e experiências perdidas no profundo do meu ser, acrescentei a aceitação e lucidez para um parto pélvico. Fui atrás de informações para entender o mecanismo de um parto tão singular, contei com o apoio de algumas pessoas que selecionei para compartilhar minha opção, e principalmente confiei na capacidade da minha assistência. Confiei também no meu corpo, que tinha parido um nenenzinho pélvico recentemente, mesmo que estivesse já sem vida. Em paralelo, comecei com exercícios, posições, florais, homeopatia, conversas com a barriga, cambalhotas na água e qualquer artimanha que estimulasse uma possível virada, tudo que não funcionou na primeira gravidez. Em um estranho paradoxo, praticar essas atividades me dava segurança para apoderar-me do meu parto pélvico. As flutuações de humor e emoções de uma grávida tangem a bipolaridade, acrescente o fantasma de uma perda recentíssima, a solidão de um companheiro ausente, duas centenas de picadas na barriga, e as reticências, até mesmo de ativistas do parto, sobre parir um neném de bunda. Em muitos momentos eu me sentia andando em uma ponte suspensa no meio do temporal. E foi numa dessas travessias que meu filhote escolheu chegar, quase às 37 semanas. Nos dias que antecederam o parto eu tinha conversado com a amiga que também seria minha doula, e que foi meu esteio, junto com outra amiga e também doula, nesses momentos de insegurança, e confessei que se meu percentual de entrega não fosse total eu não seguiria em frente, não queria o medo infiltrado no meu trabalho de parto. A receita para um parto pélvico dar certo é entrega irrestrita da mulher e experiência do obstetra, não há lugar para dúvidas, não há espaço para temores. Combinamos que ela tentaria organizar uma manobra para virar o bebê com uma obstetra amiga em último recurso. Era uma sexta-feira, e depois dessa conversa, caminhei longamente para aliviar a tensão. O sábado passou sem nenhum sinal aparente fui deitar por volta de uma da manhã e como fazia sempre, ergui o quadril, apoiando as pernas na parede. Domingo, acordei por volta das sete da manhã e senti uma pontada dolorosa no baixo ventre, ui xixi! Esvaziei e voltei a dormir para despertar às nove, com outra pontada, ainda mais dolorida, o trabalho de parto tão desejado, imaginado, adiado, buscado, estava acontecendo, eu sorri, fechei os olhos e senti os movimentos agitados do bebê se preparando para chegar. As contrações já chegaram em pequenos intervalos, intensas e doídas. Me despedi da barrigona e falei para ele que viesse, muito amor o esperava do lado cá. Liguei para a médica, que estava voltando de uma praia perto, para a doula e chamei minha prima que morava no mesmo prédio, para me ajudar. Llevantei e pus um mantra pra tocar, respirei fundo e uma calma profunda me tomou, senti que não teria nada com que me preocupar. Tomei meio copo de leite de soja entre uma contração e outra, que já me faziam perder o fôlego, eu sentia o colo do meu útero se abrindo, e nem adianta a Medicina dizer que não é possível, simplesmente eu sentia meu interior expandir. Arrumamos as coisas e fomos para maternidade, eu, Luna e a prima Nathalia, minha tenda vermelha começava a ser formada. Fui direto para a emergência ser avaliada com o plantonista que ao me examinar constatou dilatação completa, mas não percebeu que tocara a bundinha e não a cabeça do Miguel. P-p-p-poker face, p-p-poker face! Não doutor, muito obrigada mas não vou aceitar a cesárea instantânea com a qual o senhor me brindará caso descubra em que posição Miguelito está. E ouvi ao longe uma vozinha me dizendo que seria encaminhada ao centro obstétrico, respondi que apenas sairia de onde estava quando a minha médica chegasse e me calei para todo sempre. Ele tentava continuar a anamnese, e às suas perguntas e as da enfermeira sobre possíveis dores e sintomas eu apenas vocalizava os sons da minha partolândia intensa. Antes de passar a ignorá-los eu notei que estavam bastante desconfortáveis. Uma mulher entregue as suas sensações de parto é força com a qual certamente não costumam lidar e tentavam tratar com “normalidade” uma fêmea arisca que se agachava e gemia alto em cada contração. Chegaram as doulas, e permanecemos lá na salinha do consultório a espera da Dra. Querida chegar, enquanto Nathalia tomando o papel de pai, foi resolver a internação e encaminhar Luna, que só voltaria para cortar o cordão umbilical, enquanto eu tentava encontrar alguma posição que me desse conforto, sem resultado. A grandiosidade daqueles movimentos, a força que eu sentia no ventre perpassava todo meu ser, as poéticas ondas eram na verdade caixotes, que quebravam com estrondo na arrebentação. Senti necessidade de gritar e berrei alto três vezes, equalizei e retomei os gemidos. E ela chegou, a contraparte da ciência, a parceira que sempre acolheu minhas necessidades e desejos, que sempre percebeu a mulher, e não um procedimento obstétrico. “Dr. Plantão” apressou-se em passar o útero-bomba adiante, e engasgou quando soube que eu estava prestes a parir um bebê pélvico, agradeceu sua vinda e possivelmente ainda deve engolir em seco quando lembra do “enorme perigo” que correu. Subimos sem demora para o apartamento, não sem antes ser assediada moralmente no elevador pelo técnico de enfermagem que conduzia uma cadeira na qual eu tentava me equilibrar na posição menos desconfortável, já que não conseguia sentar. É imperdoavelmente desrespeitoso o modo como a sociedade percebe uma mulher parindo, ignoram sua sensibilidade potencializada, o estado alterado de consciência, a avalanche de sensações que está atravessando. Alguns fingem não perceber, outros assediam com jocosidade ou violência, reprimindo, menoscabando, comandando, punindo. O fato é que, mesmo eu estando em um dos melhores hospitais da cidade, fui vítima de uma piadinha infame, não percebida por mim no momento porém captada no registro em vídeo que a doulamiga fazia, e respondida prontamente por Ivana, outra prima que se juntou à tenda para fotografar. Adentrei no quarto arrancando as roupas e indo para o chuveiro, a nudez era libertadora e relaxante. O tampão mucoso saiu, tentei acariciar minha barriga, mas ela contraiu em resposta, pedi desculpas pela intromissão. Vieram então os puxos, fui para o quarto e a Dra.Querida fez um toque quase insuportável, certamente a única dor desagradável que senti em todo o processo, achou que ainda estava alto e foi trocar de roupa. Eu fiquei de joelhos e me apoiei no encosto dos pés, alguém colocou um travesseiro, era a posição que escolhi para parir, a doula tentou me massagear, recusei, a essas alturas qualquer toque ou tentativa de fazer contato com o mundo me era desagradável. Fechei os olhos e senti que estava chegando a hora, fiz força, a Dra.auscultou os batimentos, e disse que ia visitar uma outra paciente, enquanto a equipe do hospital ainda no entra e sai com todas as “máquinas de fazer ping”, tentando paramentar o quarto, ergui-me falei que ia sair. E senti Miguel escorregando de mim, com um leve ardor. Ouvi alguém sussurrar que era a bolsa e de repente uma fala emocionada: “Meu Deus, doutora! É ele, vem Miguel, Miguel!” Meu coração acelerou e pedi para cuidarem da cabeça dele, mas ninguém me tocou. Olhei pra baixo e vi uma trouxinha apoiada na cama e ainda dentro de mim, meu bebê pélvico e empelicado sentou na cama, e estava calmamente abaixando os bracinhos, e então saiu inteiro rompendo a bolsa e caindo na cama num choro forte. Eu prontamente o ergui e trouxe pro meu peito, não queria que nenhuma outra mão o pegasse, e de fato a única intervenção que recebi foi um abraço cúmplice da minha obstetra. A alegria explodiu em vivas, palmas e muitas lágrimas emocionadas, todas celebravam comigo esse lindo e especial nascimento. As palavras não serão suficientes nem fiéis as emoções, igualmente nunca sentirei nada tão arrebatador. Eu abracei meu neném, cheirei seu corpinho e aquele rostinho inchado, provei o gosto do vérnix e pra sempre terei na memória seu perfume. Depois de percorrer um longo e por vezes cansativo caminho, cheio de surpresas, nem sempre felizes, eu tinha meu filho parido e nascido de mim! Meu milagrinho estava ali nos meu braços, e me fitava com olhinhos que ainda se acostumavam a luz. E nesse instante, eu era apenas Gratidão! E de fato ninguém o tocou, envolvi-o em campos, e a neonatologista de plantão o avaliou entre minhas pernas, sugeriu passar uma sonda para testar se o “caminho do leite” era normal - Como assim, caminho do que mesmo? Retornei por alguns instantes da minha viagem por mares ocitocinados para responder ao jaleco branco que me chamava - Mas esse tal de modelo tecnocrático não perde oportunidade de se infiltrar! Recusei polidamente, e apenas permiti a aplicação da vitamina K e nos 2 dias que passamos internados, ele sempre foi cuidado por mim mesma no apartamento. Fiquei lambendo minha cria e ele lambendo meu seio, o cordão só foi cortado cerca de quarenta minutos após o parto, que aconteceu às 12:22 do dia 29 de maio de 2011, pela Dra. Querida e o auxílio luxuoso de Luna, a irmã. Após nos desconectarmos me levantei e a placenta nasceu no banheiro, peguei a árvore da vida nas mãos e a beijei, agradecendo seu cuidado em nutrir meu filho e sua vigilante proteção. E essa aventura prazerosa fez tudo valer a pena, pois nem a alma nem o sentimento é pequeno. Agradeço a Felipe, pelo sentimento que nos uniu em concepção. A Luna que me ensinou a ser mãe, a Maria que me ensinou a superar, a Miguel que me ensinou a parir. Gratidão a todos que de alguma forma compartilharam e participaram comigo na construção desse parto e repartiram comigo a alegria dessa experiência. E finalmente agradeço a Vida, por tudo e por cada coisa, obrigada!

Comentários

  1. Lindoooo demais seu relato. Vc foi mãe guerreira mesmo. Meu 1º filho tb se chama Miguel, mas ele nasceu de uma desnecesárea, mas acabei de ter 2ª de PN e foi emocionante, fiquei 28 horas em TP e sem analgesia trouxe minha pequena ao mundo. Mas tive intervenções nela que não queria, infelizmente esses cortes na nossa partolândia, sim pq ela vai até após o bb ter nascido deixa a gente meio boba. Eu queria pegar e ir pro quarto eu queria dar o banho, eu queria que cortasse o cordão depois de parar de pulsar, mas essas intervenções ninguém me ouviu, algumas por causa dos protocolos do hospital (o que é uma bosta, acho que mesmo num hospital nossas vontades deveriam vir primeiro) e a do cordão o GO fingiu que não lembrou que eu havia pedido isso. E na hora eu estava idolatrando minha filha que nem vi que ele já havia pedido que meu marido cortasse o cordão.

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